segunda-feira, 8 de maio de 2023

O perfume das rosas

 Aconteceu. Felipe começou a sentir um cheiro de rosas. Não havia passado por nenhum jardim, nem havia flores por perto. O nariz respirava o odor das rosas. A princípio isso era agradável e evitava os desgostos dos cheiros alheios e dos dejetos pelas ruas. Talvez fosse momentâneo, uma memória, um evento do passado que viera à mente.

As coisas se complicaram quando sua amante ao telefone lhe disse que o cheiro do perfume dele ficara na sua cama. Impossível, ele não usara nenhum perfume naquele dia e ela insistia que o perfume estava lá como uma lembrança de seu corpo. 

Então, começou a prestar atenção e sentiu o agradável perfume das rosas a lhe acompanhar. Comprou perfumes caros, cremes, sabonetes. Venciam-se os odores e lá estava o cheiro de rosas, cada dia mais forte. Ficou preocupado. Será que as pessoas sentiam o mesmo cheiro que ele?

No dia de seu aniversário despertou feliz, como nunca em todos os anos de sua vida. Porém, ao tirar a roupa e se olhar no espelho, viu um pequeno botão de rosa brotar de seu peito. Como esconderia aquilo? Entrou debaixo do chuveiro e se lavou com força, encheu o banheiro de pétalas vermelhas e quando olhou para o peito, o insistente botão de rosa ganhava mais forma e mais cor.

Vestiu uma camisa larga, grossa, apesar do calor, e desceu para o salão de festas onde aconteceria seu aniversário. Os convidados foram chegando, abraços, sorrisos e o macio das pétalas e lhe acariciar o peito. Sentiu necessidade que a festa acabasse, pensou em xingar a todos, mandar todos embora, mas controlou-se naquela fúria que era descabida para um homem que portava uma rosa no peito.

Aliviado por ninguém ter desconfiado de nada, voltou para seu apartamento e na solidão das paredes pôde respirar tranquilo. Uma convidada elogiara seu perfume, sem menção ao odor de rosas que dele exalava, se quis perguntar, calou, e isso o fez adormecer levemente no sofá.

Acordou de madrugada com um incômodo na garganta. Por certo se resfriara com o ar condicionado e agora sentia como se espinhos ferissem sua glote. Foi ao espelho, abriu bem a boca e viu saírem de sua garganta pequenos galhos espinhosos.

Como iria ao trabalho pela manhã? Como falar com as pessoas? Esperou amanhecer e ligou para a empresa. Falou algo quase incompreensível, que foi o suficiente para saberem que Felipe não estava bem. Dispensaram-no do dia de trabalho e colocaram na conta dos excessos da festa aquela linguagem quase inarticulada.

Só poderia ser um pesadelo. Resolveu deitar-se e descansar um pouco. Dormiu por horas e acordou com uma ânsia macia que explodia por sua boca. No caminho para o banheiro, vomitou rosas. Pétalas e mais pétalas, botões de rosa e mais botões rosa caíam pelo chão do apartamento. 

Sentiu que seus dedos doíam e quando olhou, brotavam espinhos das unhas. A dor começou a se fazer insuportável com as horas, até que todos os galhos da roseira cresceram e lhe tomaram conta das mãos. 

Deitar-se foi impossível. Havia espinhos pelas costas e pelas nádegas. O buraco no peito aumentara e havia um buquê de rosas vermelho vivo a florir seu tórax. Foi ficando cansado, o corpo a pedir cama e os espinhos a lhe castigarem os braços, as pernas e agora até pelos ouvidos saltavam ramos com rosas.

Tentou respirar, sentiu que do nariz escorriam pequenos filetes de sangue. Puxou o ar com mais força e sentiu que seus pulmões se rasgavam e lhe negavam o sopro da vida. Tentou gritar e quando imaginou ter dado um berro, explodiram por entre seus dentes inúmeros galhos com rosas. Sufocou, entrou num transe entre o sono e a vigília e de dentro de seus olhos duas enormes rosas floriram para a primavera.

Esquecido de todos, Felipe floriu todo o apartamento. Ninguém mais o viu no trabalho, sentiram sua falta nas festas e sua família julgou-se abandonada pelo filho que nunca mais ligara. 

As contas se acumulavam à porta de Felipe, os jornais amareleciam, os cartões de crédito ficavam em envelopes que se amontoavam na caixa de correios do edifício. Quando as contas do condomínio extrapolaram o aceitável, o síndico resolveu tomar providências. Bateu à porta por vários dias. Ninguém atendeu. Chamou-lhe a atenção o forte cheiro de rosas que saía pela porta.

Resolveram, então, arrombá-la; quando a colocaram abaixo, encontraram uma enorme roseira plantada no meio da sala. Havia rosas e galhos por todos os cantos, como se a roseira houvesse ocupado cada centímetro do apartamento. Nada de Felipe. 

Alguns dias depois voltaram com machados e serras, cortaram os galhos mais grossos e o caule da roseira. Limparam o apartamento e o colocaram à venda. Só não se livraram do eterno cheiro de rosas que tomou conta de todo o edifício. 



terça-feira, 2 de maio de 2023

Tróia

Este ofício de lidar com o tempo 

de contar as horas 

de reduzir os minutos que a conta-gotas leva nossa vida, 

é dura tarefa de quem ainda, 

fora das redes sociais, 

contempla a vida. 

Há o tempo, o iniludível tempo, 

com hora marcada 

com data vencida igual a boleto de início de mês

 a cobrar nosso prazo de validade. 

Já tive dez anos, vinte, trinta, 

hoje tenho quarenta e tantos anos

 e sou obrigado a repassar as memórias

 rever um tempo imobilizado pela história que até aqui construí. 

Mas não gosto do tempo passado

 esse tempo velho de baús mofados 

que não põe nem tira um ponto sequer de minha vida.

 Olho para frente, 

confronto o tempo

 sou Heitor à espera de Aquiles

 a arrastar meu corpo aos redores do muro de Tróia.

  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...