domingo, 18 de abril de 2021

A arte de apertar as campainhas

Éramos garotos em uma cidade tacanha de tamanho e de espírito. Palmital não é uma boa cidade para se viver, a população é nociva, mesquinha e tem mania de grandezas sobre pequenas coisas. A vida corre lenta e sem mudanças, talvez o apocalipse pudesse por fim nela e a seus habitantes. 
Infelizmente, nasci em Palmital, suas ruas não me trazem saudades, apenas dores e tristezas. Mexer nesse baú é despertar sentimentos diversos, contraditórios, que se adequam bem aos domingos.  Por isso, hoje acordei com necessidade de lembrar.  
Queria escrever algo ao estilo de A cidade e a infância, de Luandino Vieira, mas não posso. Gostaria que a cidade onde nasci me despertasse amor, saudades, leveza, o peso dela, porém, não permite esses excessos da imaginação.  
Como falei, acordei com necessidade de lembrar. Éramos garotos em uma cidade sem pista de skate, com poucas quadras para jogar futebol e alguns campos quase privados, com pequenos mestres a dominar o local. Para piorar, alguns campos eram dos crentes e para jogar bola precisávamos frequentar os cultos e baixar a cabeça para os donos do campinho.  
Sair de Palmital foi o melhor que fiz. Terra de gente tacanha e mesquinha. Repiso aqui apenas para que não tenham dúvidas. Romper a bolha viciosa é um esforço gigantesco de se sobrepor aos filhinhos de papai, donos da cidade.  
Algo de bom tínhamos. A arte de incomodar as pessoas. Como garotos saíamos pelas ruas sem rumo, a pé, sem pressa para que a cidade não acabasse sobre nossos pés.  
Nosso gosto, e pelo que pude verificar esses dias ao falar com minha mãe se mantém, era o de apertar campainhas. Havia algumas técnicas. Solitário era mais fácil, apertávamos a campainha e saíamos andando naturalmente e mesmo sob acusação podíamos negar o feito. A segunda técnica era em grupo, de algazarra, de fome de aventuras, que como disse em Palmital sempre eram pequenas. Aí não tínhamos saída, era apertar e sair correndo; a tropa saía em passos de cavalo e ao dono da casa restava os gritos e os xingamentos.  
Um dia, num grupo de uns quatro garotos, o que incluía meu irmão, apertamos uma campainha. A dona da casa estava chegando de carro e saiu atrás de nós nos perseguindo com o veículo pela rua. Subíamos calçadas, escondíamos atrás de carros e essa mulher nada de se satisfazer. O ódio brotava cada vez com mais força sobre os olhos dela e ela perseguia. Logo havia um prazer mútuo entre correr e correr atrás e aquilo se prolongou por vários minutos, até que convencida de ter dado uma lição nos garotos, voltou para sua casa satisfeita.  
Saímos ofegantes de trás do veículo, ao mesmo tempo o riso brotava de nossos rostos. A aventura da noite estava garantida, nossa fome de apertar campainhas saciada. Havia duas saídas, voltar para casa e descansar ou ir até a praça da cidade ver o movimento. Como ainda era cedo, fomos para a praça ver os rapazes ricos passar de carro e as meninas pobres ou ricas a esperar que um deles parasse e as levasse para dar uma volta. 
No caminho de ida e volta ainda fizemos mais algumas vítimas.


  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...