quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

"Ele está de olho é na B[o]utique dela"

Chegar aos 40 anos não é fácil. É a idade em que nossos ídolos da infância começam a desaparecer. Eles morrem sem dizer adeus, somem das telas, dos jornais, das playlists de música, sendo que alguns ainda estão preservados em nossas estantes no velho e bom vinil, que agora voltou à moda. 

Hoje, dia 07 de janeiro, não foi diferente, mais um dos meus pilares da infância desapareceu: Genival Lacerda. Lembro-me de ser bem pequeno quando ele aparecia no Chacrinha. Genival usava sandálias de couro, calça branca e camisa colorida, além de seu inseparável chapéu. 

As músicas de Genival incendiavam a criançada. Quem nunca se divertiu com "Severina Xique Xique"? E quem nunca descalço, sim, naquela época as crianças ainda andavam com os pés no chão, rodou ao som de "Ele está de olho é na boutique dela", dançando mesmo com o irmão mais velho ou mais novo pela sala. 

As músicas com duplo sentido ainda não eram politicamente incorretas e todos se divertiam ao som do forró na velha Telefunken preto e branca, com tela colorida na frente. É meus amigos, nem todos tiveram televisores coloridos em casa logo que a novidade surgiu. Em muitas casas, o velho televisor de botão seletivo reinava. Nem por isso, éramos menos alegres. 

Era  tempo de colocar o toca-fitas e ligar na rádio pedindo ao locutor uma música que era para gravar. Atentos, todos esperavam a voz dizer que podia soltar o play. E, ali, a felicidade reinava, trocávamos fitas, emprestávamos e devolvíamos os cassetes que animavam nossos fins de tarde.  

Nem todos têm a honra de que no dia de sua morte cantem, se alegrem, ouçam suas músicas, ensaiem passos de forró e cantem: "Mati o véio, mati o véio". Assim, penso que deveria ser o dia de minha morte, com muito canto e alegria, nada de choros ou tristezas, mas sim, que, cada um, trouxesse consigo um canção no coração.

Viva Genival Lacerda, a alegria de muitos corações por esse Brasil a fora.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Olho para as coisas e elas estão mudas
os móveis calados guardam memórias
de conversas, de mãos, de ideias.

Há confissões detrás da cama, perdidas atrás do sofá
há solidões guardadas dentro das gavetas
há palavras jamais pronunciadas
que morreram na garganta antes de ser.

Meu Deus, onde está a poesia, o encanto?
Vejo boletos chegando, contas a pagar
afazeres domésticos a me distrair.

Uma criança grita no fundo do corredor
e há tanta vida neste gesto
que não sei como agir diante do mundo
criado pelo sorriso e pelo encanto da infância.

Os homens estão mudos e olham para baixo,
perderam as esperanças e as forças para reagir,
caminham para o nada diante de si.

Como abrir a porta? Como beijar a mulher
e os filhos ao entardecer. 
Não trago nada em minhas mãos
e mesmo assim são felizes em me rever,
justo eu que não suporto olhar-me
que não sustento o olhar do Outro
a me enfrentar no espelho.

É noite e não sei o que fazer com o dia de amanhã
há tanto peso sobre meus ombros
há tantas culpas que desconheço,
mas sigo assim mesmo para cama
sem solução para o conflito que deixei sobre a mesa.

Sou o homem respondendo à voz paterna:
"do seja homem, não chores",
sem saber bem o que isso significa.
A carteira de identidade diz ser eu
o homem da foto, nascido há exatos 41 anos.

O que dizer se ainda procuro o menino
sobre o pé de limão no fundo do quintal?
O que fizeram com o menino que fui?
Ainda procuro-o em meu rosto
perdido em algum canto do universo.

Não sei quando herdei a patente de homem
só percebo que os móveis me entendem,
pois deixaram de ser madeira, tronco, raízes
e foram encarcerados em formas domésticas.
Acho que é isso: o menino que há em mim
reclama do homem que me tornei
domesticado pelas obrigações, pelo trabalho
pela imagem que deram a mim.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Enfim, 2021 começou. Mas o que mudou?

Segunda-feira, primeiro dia útil do ano de 2021. Enfim, o ano começou de verdade. Os boletos começam a vencer no dia 05 e a vida normal segue seu curso inevitável. As notícias tampouco mudaram. O Coronavírus continua ativo, gente morrendo, gente sendo internada, pessoas debochando da doença, outras aglomerando em festas de mais de 2000 pessoas e um presidente que não se aproveita meia dúzia de palavras. É, o ano do brasileiro não começa fácil. Seria uma replay de 2020?

O fato é que entra ano, sai ano, a realidade do pobre e do trabalhador não muda. Ambos fazem listas de desejos, anotam sonhos, prometem jogar na loteria, comprar mais Vales Sortes para ganhar uma graninha extra no fim de semana, ligam para rádios populares a fim de ganhar um vale compra, um gás, um churrasquinho e seguem suas vidas carregadas de frustrações, assistindo a programas da Rede Globo e ainda não acreditando que Silvio Santos esteja vivo e com as mesmas brincadeiras de mais de 30 anos. 

É ano novo e a verdade é que nada mudou. O calendário apresenta novas datas, mas nada que fuja de velha semana que começa no domingo e termina no sábado. A rotina é a mesma. Quem tem trabalho vai trabalhar, quem não tem, enfrenta filas para arrumar emprego, manda currículos, ouve mais não do que sim e segue vivo enquanto Deus permite ou algum maluco não o atropele na Avenida Colombo, por não respeitar o semáforo.

Com certeza o prefeito eleito apresentará um plano de governo que não altera em nada a vida do cidadão. Vai reformar meia dúzia de praças, mandar capinar algum parque, enquanto nos arrabaldes a população tem de andar na rua porque o mato cobre a calçada

O jornal local apresentará mais um caso de feminicídio, a população ficará horrorizada por dois dias e depois esquecerá o fato, até que novo corpo apareça estendido na frente dos filhos. Alguns moradores continuarão jogando o sofá velho no meio da avenida, outros malucos descontando sua raiva no pobre animal que tem em casa.

Além disso, o racismo correrá solto de novo com as pessoas negando que são racistas, mas julgando o próximo pela cor, mudando de calçada quando passa um negro, achando que serão assaltadas quando passar perto de um menino negro ou pardo. Sem dizer que farão posts racistas protegidos pelas telas dos computadores e por meio de perfis falsos na rede mundial de computadores.

Enfim, 2021 começou e nada mudou. Crianças continuarão sendo mortas por balas perdidas, o desemprego não dá sinais de recuo, a cesta básica fica cada dia mais cara, o povo irá às ruas por causa de seu time de futebol, porém, descansará a bunda no sofá de casa quando perder mais um direito. Esse é o brasileiro, alienado e feliz, achando que mora no melhor lugar do mundo, porque aqui não tem terremoto, não passa tornado, não vive em guerra. O brasileiro é pacífico e jamais rosnará até que tentem tirar de sua boca o último pedaço de carne que resta em seu prato. 

sábado, 2 de janeiro de 2021

Espera

 Antes, era aquela alegria da espera
aqueles medos juvenis
a boca tremendo, as mãos suando
o corpo todo numa entrega insana.

O coração desconhecia as tristezas
e as más notícias rondavam a vizinhança
sem nunca bater à minha porta
sempre aberta à espera.

Hoje, é o mundo em colapso.,
a boca não treme mais, as mãos estão secas
e fazem cumprimentos obrigatórios.

Mas, porque sei da espera
sou feliz e gozo da alegria
que marca o fim de todos os encontros.
Sou meio tudo
meio branco
meio negro
pardo por definição.
Sem eira nem beira
à margem de tudo
que os conceitos denominam .
Sem raça sem cor,
longe dos enquadramentos
sinto uma saudade
inexplicável de mim.
 Fui pelo caminho de tuas pernas
sem saber onde chegaria
se ao sul ou se ao norte.
À noite, dei-me com teu ventre
abrindo-se em flores
e deitei-me às tuas costas.
Percorri o caminho de teus olhos
tão silenciosos quanto os meus
e fiquei mudo ante o nada.
Um eco de vozes distantes
fazia coro às minhas dúvidas
e me dizia como deveria ser bom
ser livre
para namorar uma mulher negra.
Como deve ser bom
em um dia de chuva
cobrir-me com a pele
de tuas ausências.

  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...