Fui beber um copo d'água, centrado em mim mesmo, dando voltas ao redor de mim, sozinho no apartamento ocupado por todo meu ser que se esparrama pelos cômodos, dominando-o num sentido de posse incessante que abarca meu olhar pelos gritos surdos despedaçados de almas antigas e seres estranhos.
Lanço um olhar pela janela enquanto bebo a água que acabou de escorrer pela torneira e que no copo se misturou a restos de limão que haviam ficado ali de um gole antes. Vejo no quintal do vizinho um pequeno jardim ou um modesto projeto de flores para embelezar a casa. Mas os duendes ainda não moram ali, o pequeno descampado em que só passeiam as formigas ainda não rende a beleza para servir de habitação a seres imagináveis.
Chama-me a atenção uma pequena cruz próxima da árvore. Lembro-me das cruzes espalhadas pelas estradas marcando com o sinal do sacrifício a morte de mais uma pessoa, agora alma vivente pelos bosques da solidão aterradora de uma viagem que jamais chegará ao seu destino.
Intrigo-me com essa pequena cruz. Não se parece com um pedaço de pau qualquer que sirva de marca para saber onde foi semeada a última flor. Quem sabe um feto ou um gato ou cachorro morto nos últimos dias. Mas por que a cruz então? Ela também serve a animais? Terão eles almas ou memória? A cachorra que tinha Fabiano possuía memória e fazia do céu dela um enorme Fabiano que ela pudesse lamber as mãos.
Vejo o enorme céu de sábado à tarde e imagino que deva existir um Deus enorme que possa cobrir toda esta imensidão e nós como pequenas baleias, após nosso delírio de morte poderemos também lamber-Lhe as mãos. Ou somos arrogantes demais para isso ou nos achamos civilizados demais substituindo assim por um simples ósculo quase insípido?
Já terminei meu copo d'água, contando assim parece que eu ainda estava tragando os goles de água em frente da janela da cozinha. Fato óbvio este, afinal se lá estivesse não estaria a escrever estas linhas. Já são elas a memória de um passado recente e levemente ficcionalizado pela impressão de meus olhos que atingiu o cérebro e no curto espaço do corredor até o escritório transformou-se em material textual e organizado.
Enquanto escrevo carregam páginas de mulheres irreais, posando para câmeras, criando e participando elas também de um mundo irreal. No oculto prazer que lhes sobe aos peitos em saber-se voyeurizadas por algum anônimo tarado em ver mulheres desconhecidas e desprovidas de almas e sentimentos, que jamais podem ser atribuídos a estas imagens mortas que sorriem para o nada em que serão jogadas.
Neste instante passa em frente de meu apartamento uma ambulância do corpo de bombeiros em alta velocidade e com suas sirenes ligadas. Alguma pessoa a esta altura não pertence mais a este mundo, agora para mim aquela cruz que está no jardim da casa do vizinho faz mais sentido. Ouço uma coruja piando... ou não a ouço é apenas uma memória de São Bernardo que chegou tardiamente a meus ouvidos. Volto às minha atividades.